1. Introdução.
O
Supremo advertiu: irá fazer publicar uma súmula vinculante, capaz de colocar
por terra todos os incentivos fiscais estaduais de ICMS concedidos à revelia do
CONFAZ e, de uma vez por todas, demover do cenário jurídico e político
brasileiro o uso de instrumentos fiscais do repertório de políticas estaduais de
desenvolvimento. É a proposta de súmula vinculante, de número 69.
Será o fim da chamada guerra fiscal (expressão replicada
incansavelmente pela imprensa, onde o adequado seria, no mais das vezes, o uso
da expressão “disputa”)? Será ainda que de acordo com os Princípios
Constitucionais hoje vigentes, todos os incentivos estaduais mereçam o mesmo
tratamento e destino?
Num país com a alta carga tributária como a nossa, uma
iniciativa que reduza o impacto da tributação deveria ser elogiada. Mas então,
porque tantas críticas e ataques a essa prática dos entes federados? Será que tais
práticas são feitas apenas por governadores que teimam em fazer o mal ou,
existem motivações de caráter público para que assim procedam?
2. A Concessão de Benefícios Fiscais sem a Aprovação do
CONFAZ
Como
se sabe, os Estados que compõem a federação não raras vezes disputam entre si a
preferência pelos empreendimentos empresariais que pretendem se estabelecer em
determinada região do País. Para se posicionar como aptos a receberem determinados
conglomerados, os entes oferecem terrenos terraplanados, infraestrutura
privilegiada, garantia de acesso à portos e rodovias e, por fim, algum atrativo
fiscal, no mais das vezes, no que tange ao ICMS.
Tais benefícios revestem-se das mais variadas formas,
através da concessão de créditos presumidos, redução de alíquotas, financiamento
de parte do ICMS recolhido e etc. Nesse ponto, a criatividade das equipes
econômicas anda sempre à frente dos técnicos legislativos.
Os
Estados que se sentem prejudicados adotam dois caminhos: ora ingressam com
ações diretas de inconstitucionalidades sobre as leis do outro ente federativo,
indo à discussão direto para o STF; ora glosam os créditos fiscais dos
contribuintes situados em seu território, o que deságua num litigio judicial
que não raro, chega também à Suprema Corte.
Em
junho de 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou inconstitucionais 23
formas de incentivos fiscais que envolvem redução do Imposto sobre a Circulação
de Mercadorias e Serviços (ICMS) para atrair empresas. O fundamento, em
síntese, é a ofensa aos arts. 150, § 6º, 152 e 155, § 2º, inc. XII, letra
"g", da Constituição Federal.
Conjugando
tais dispositivos constitucionais, a conclusão a que chegou a Suprema Corte foi
no sentido de que o legislador constituinte quis reservar à Lei Complementar a
regulação sobre a concessão de subsídios, isenções, redução de base de cálculo,
crédito presumido, anistias, benefícios fiscais enfim, qualquer redução de
encargo que diga respeito ao ônus gerado pelo ICMS.
Essa
Lei Complementar é a de nº 24, de 07 de janeiro de 1975 (anterior à nova ordem
constitucional inaugurada com a Carta Magna de 1988 e, ainda sob o regime
antidemocrático que o País presenciou) que dispõe sobre a celebração dos
convênios para a concessão de isenções de ICMS no âmbito do CONFAZ - Conselho
Nacional de Política Fazendária. Esse conselho reúne todos os Secretários
Estaduais de Fazenda para celebrarem, através de convênio, qualquer prática que
resulte na redução ou eliminação, direta ou indireta, do respectivo ônus devido
por força do ICMS.
A
concessão de benefícios dependerá sempre de decisão unânime dos Estados
representados. Somente o Estado do Amazonas foi privilegiado. Excluído dessa
regra, pode essa unidade federada conceder qualquer beneficio sem observar
aprovação pelo CONFAZ.
3 - Proposta de Súmula Vinculante 69
Os Estados por sua vez, fingiram não entender o recado do
STF. Mesmo com esse volume de ações julgadas de uma só vez, sendo que todas com
o mesmo desfecho (concessão de benefícios sem a existência de suporte em
convênio celebrado no âmbito do CONFAZ redunda em inconstitucionalidade da lei
estadual) continuaram com a mesma prática: a concessão de benefícios sem a
aprovação do CONFAZ.
Nesse
cenário, achou por bem o Min. Gilmar Mendes propor um edital de súmula
vinculante sobre o tema, cujo verbete é o seguinte:
“Qualquer
isenção, incentivo, redução de alíquota ou de base de cálculo, crédito
presumido, dispensa de pagamento ou outro benefício fiscal relativo ao ICMS,
concedido sem prévia aprovação em convênio celebrado no âmbito do CONFAZ, é
inconstitucional.”
Caso a Súmula Vinculante prospere, todos os incentivos
fiscais concedidos sem a aprovação do CONFAZ terão o mesmo destino: a
marginalidade. Os Estados “concorrentes” poderão reclamar direto ao Supremo
alegando o descumprimento da dita súmula, o que será um caminho célere para
“derrubar” o incentivo, se comparado com o rito clássico das ADINs ajuizadas
até hoje.
A
redação da proposta da súmula lança apenas uma ótica sobre a problemática que visa
extirpar do cenário jurídico nacional: a ausência de chancela unânime do CONFAZ. Todavia, a exigência
de unanimidade do CONFAZ soa estranha se considerarmos os princípios
fundamentais da República Federativa do Brasil, inaugurados com a vigência da
nova ordem constitucional de 1988.
4 – Uma nova ótica sobre a questão. ADPF 198.
Essa ótica não é nova. Encontra-se em trâmite no mesmo STF desde
2009 uma ação judicial de arguição de descumprimento de preceito fundamental
(ADPF 198), de inciativa do governador do Distrito Federal, onde se questionam
os artigos 2º, § 2º, e 4º da Lei Complementar nº 24/75, por violação ao artigo
1º da Constituição da República, na medida em que ofenderia o princípio
democrático, o princípio federativo e o princípio da proporcionalidade.
Inúmeros entes federados ingressaram no feito na qualidade de amicus curiae.
É de acrescer ainda aos argumentos expostos na ADPF, que a
necessidade de aprovação unânime do CONFAZ violaria, em alguns casos, o
disposto no artigo 3º, III da Carta Magna. Como se sabe, a carta republicana,
quando emprega verbos de ação em seu texto, é no intuito de dirigir, dar um
norte pelo qual os Governantes deverão seguir. Ao determinar a obrigação de se
buscar a redução das desigualdades sociais e regionais, um incentivo icemista
que se molde a essa finalidade, seria de bate-e-pronto inconstitucional?
Já
nos ensinou o advogado dos advogados, mestre Rui Barbosa que: “Não há, numa
constituição, cláusulas a que se deva atribuir meramente o valor moral de
conselhos, avisos ou lições. Todas têm a força imperativas de regras, ditadas
pela soberania nacional ou popular aos seus órgãos”(Comentários
à Constituição Federal Brasileira, II, p. 489) Se diante de uma possibilidade de
reduzir a pobreza de determinada região, o governante visse como opção atrair determinando
empreendimento por meio incentivos fiscais, e esse empreendimento trouxesse
emprego, renda, redução de desigualdade e mais ainda, aumento de arrecadação, não
estaria ele cumprindo os objetivos da Carta da Republica?
Esperar que todos os
Estados primeiramente aceitem que uma unidade federada incentive esse ou aquele
empreendimento ou setor, ainda que provoque eventualmente a não instalação de
empreendimento em seu território, seria, ao nosso ver, ingênuo.
Tomemos como exemplo o clássico caso da disputa (e
não guerra)
pela instalação da montadora Ford Motors entre as cidades de Gravataí (RS) e Camaçari
(BA). Ambos os Estados envolvidos acenaram com incentivos fiscais para atrair
dito empreendimento. Era de se esperar que na reunião do CONFAZ, o Secretário
de Fazenda do Estado do Rio Grande do Sul anuísse com o benefício que foi
concedido pelo Estado da Bahia e vice-e-versa? Some-se ainda o Estado de São
Paulo, o mais industrializado, que usualmente não aprova incentivos com esse
propósito.
5. Conclusão
A questão deveria ser encarada como uma colisão de preceitos
constitucionais. Se por um lado há aqueles que apontam a inconstitucionalidade do
incentivo concedido unilateralmente por uma unidade federada, por outro nos
parece inegável afirmar que em vários casos a concessão do incentivo vem
justamente em homenagem ao primado constitucional de redução da desigualdade,
social e regional. Como ponderar ambos os interesses?
Talvez somente com a análise de cada caso concreto. Há
incentivos que concretamente não se traduzem em qualquer melhora na qualidade
de vida da população, instituídos para agradar determinando grupo, sem ao menos
exigir alguma contrapartida do empreendimento incentivado. Já outros, reduzem a
olhos vistos a miséria de determinada região, melhoram a realidade dos que ali
vivem, produz renda e ainda, aumentam a arrecadação tributária da unidade
federada. Não há uma única das 26 unidades federadas que não tenha lançado mão
desse instrumento, a que se deve e muito o desenvolvimento regional.
Por conta dessa realidade fática é que não se mostra
razoável lançar apenas uma ótica sobre a problemática dos incentivos fiscais de
ICMS concedidos à revelia do CONFAZ. Mais ainda, colocar em pauta uma proposta de
sumula vinculante, sem antes examinar a ADPF 198, em trâmite desde 2009 e que discute
exatamente a não recepção pela Carta Constituinte de 1988 dos dispositivos que
conferem à unanimidade de um órgão do executivo (CONFAZ) a sorte do
desenvolvimento das unidades federadas. É a reflexão a que se propõe.
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